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Reflexões sobre a panificação contemporânea
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Da humildade das origens à elite da panificação mundial, descubra como a dedicação ao ofício e o respeito pelas raízes moldaram a trajetória do Chef Fernando de Oliveira.
Minha história com a panificação começa na família, com minha irmã trabalhando em uma padaria. Somos de uma família muito humilde, em que minha mãe fazia pão e coxinha para vender. Nesse tempo, ela usava o chamado fermento de litro, também conhecido como pão de Cristo.
Um dia soube estarem precisando de uma pessoa no trabalho de minha irmã, para limpar. Me candidatei e fui selecionado. Aprendi muita coisa lá, aos 14 anos, tive o meu primeiro registro como padeiro, coisa que naquela época podia. Mas acabou que minha adolescência perdi num fundo de padaria. Eu já trabalhava nessa padaria, limpando, mas o padeiro de lá, muito folgado, sempre me colocava para fazer as coisas, como, por exemplo, bater a massa.
Um dia, esse padeiro faltou e eu me ofereci para fazer o trabalho dele. O proprietário aceitou. Com o tempo, dispensou o padeiro e eu fiquei.
Naquela época, meu salário era R$ 40,00. Posteriormente, aumentou para R$ 80,00 e depois R$ 150,00 e, enfim, R$ 200,00. E aquilo era o máximo para mim, pois, dessa forma podia ajudar minha mãe – viúva do meu pai desde que eu tinha seis anos. Então eu ficava feliz de poder ajudá-la e de ajudar meus outros irmãos.
Minha mãe trabalhava numa fábrica de pastilhas — uma espécie de mini azulejo, que as pessoas usavam bastante para colocar na fachada, nos muros das casas. Acordava às 4h da manhã para ir trabalhar e, quando chegava em casa, ainda ia fritar salgados para vender na porta do trabalho, antes de iniciar o expediente na fábrica.
Mesmo ajudando minha mãe e meus irmãos – e estando feliz por isso –, com a carga que eu tinha, não consegui conciliar os estudos e o trabalho. Parei de estudar na antiga oitava série — atual nono ano — e só voltei dois anos depois.
Vim de uma padaria tradicional, mas fui migrando aos poucos. Em 2015, tive acesso à panificação contemporânea e as consultorias iniciaram. Então, montei uma padaria no meio da pandemia e padeiros tradicionais têm treinado comigo, porque hoje já existe uma preocupação dessas padarias em melhorarem seus pães.
Ainda assim, no Brasil, diferente da Europa, não temos uma base sólida; não há regras de fermentação natural. E eu não falo para imitarmos o que está lá fora. Não! Mas, em respeitarmos a história de cada país. As pessoas aqui criticam o fermento biológico. Acham que para ser pão de verdade o processo precisa ser 100% natural.
Este pensamento é decorrente do uso indevido do fermento em padarias tradicionais, em que a preocupação era de que a massa rendesse mais, fabricando mais pão, vendendo a baixo custo e gerando mais lucro. Muitas vezes, os padeiros recebiam ordens dos donos para aumentar a quantidade de pão sem nem mesmo ter tempo para deixar a massa descansar.
Por isso que às vezes, você come um pão e fica indigesto, sem saber o porquê. O fato é que a fermentação longa tem muita digestibilidade. Ma,s o contrário não é verdade. Se você usa fermento em excesso, o pão fica ácido. Já com a fermentação mista é possível ter um controle dessa acidez. Além disso, precisamos pensar ainda que a temperatura também influencia no processo, assim como a característica de cada pão.
E ainda: é preciso saber o gosto do cliente e considerá-lo. Se eu de fato for fazer um pão só com fermentação natural, o miolo vai ficar duro, a casca grossa e eu não agrado meus clientes. Então, em um pão Baguete, por exemplo, eu uso 80% de fermentação natural e 20% de fermentação “não natural”. Mas, enquanto as padarias tradicionais usam de 30 a 50 gramas de fermento, eu uso 3 gramas.
Isso acontece porque não há no Brasil uma lei que proteja esses produtos. Por que não se exige isso, como aconteceu na França? Precisamos resgatar a panificação, resgatar esses pães. A fermentação natural veio mostrar para a gente que o pão de antes precisa ser resgatado. Esse resgate é o futuro do Brasil.
Hoje mesmo, uma cliente esteve no Padeiro Artesão indicada pela nutricionista dela. Isso comprova que comer pão não é o problema e sim comer o pão adequado. Enquanto em padarias tradicionais a manteiga custa R$ 10,00 o quilo, eu uso nos nossos produtos uma manteiga que custa R$ 100,00 o quilo.
A minha vida com a padaria
Comecei a gostar de padaria quando vi que podia me sustentar com aquilo e conheci um padeiro que disputava prêmios também. Vi que precisava estudar, digitalizar as receitas que tinha e buscar participar de campeonatos. Então voltei a estudar, estudei panificação e ganhei alguns prêmios. Um deles, em 2017, no mundial de confeitaria.
Em 2016, fiquei entre os seis melhores padeiros do mundo, no Master Vi La Boulangerie, em Paris. Em 2018 teve o Mundial du Pain, Brasil; em 2019 fui para Nantes, na França, e fiquei em nono lugar, entre 20 países.
Me interessei pela panificação contemporânea para ser treinador de uma equipe brasileira em uma competição, em 2016. Mas, já tinha ido anteriormente para a França. Em 2008, fui para lá estudar confeitaria. Em 2012, 2015, estive lá também. Estudei o que é fermentação natural e bons equipamentos para o trabalho.
Acredito mesmo que o que me levou por este caminho da panificação foi a lembrança de minha mãe fazendo fermento de litro. As famílias diziam que, para o pão crescer, o fermento do pão tinha que ser ganhado. Já os parentes acreditavam muito que o pão crescia por conta disso, porque o fermento era dado por alguém. Mas a realidade é que quanto mais alimentado e mais velho, mais forte é o fermento. Tenho fermento que me acompanha há cinco anos.
As características da panificação contemporânea
A panificação contemporânea, para ser considerada dessa forma, tem a questão do rústico, da qualidade da farinha, da matéria-prima, de respeitar as características de cada pão. Do respeito ao processo. Não dá para mudar a forma, a característica.
Este mercado vem crescendo muito, a pandemia fez com que crescesse muito. A padaria brasileira deve passar por mudanças, a farinha orgânica está caminhando no Brasil e a panificação contemporânea depende muito da mão do profissional, do cuidado que temos para sair do jeito que a gente quer. E ganhamos no produto final, pois o compromisso da panificação contemporânea é não enganar o cliente, é ser fiel a ele quanto aos produtos utilizados. É assim que você ensina o cliente a comer pão de qualidade.
Mas ainda existe muita polêmica em volta da fermentação natural. As pessoas acham que, para ser um produto de fermentação natural, ele precisa utilizar 100% de fermentação natural, usar farinha tradicional. E não é assim. O vilão não é o fermento. O que adianta não usar fermento ou usar menos e usar 600 gramas de manteiga?
Há muitas fake news e falsas informações circulando na internet a respeito da panificação contemporânea. Hoje, com a quantidade de lives que se tem, tem muito problema. Muita gente fazendo lives, mas sem entender de fato do assunto, do conteúdo. O importante na panificação é ter a técnica, a temperatura, fazendo um padrão; é alimentar o fermento. Existem algumas técnicas da fermentação natural, como fermentação natural com frutas, misturando à massa, por exemplo.
Mas as pessoas querem ser diferentes e saem falando em lives coisas que não têm comprovação científica. Hoje, no Brasil, você precisa de conhecimento e de um bom marketing para fazer sucesso. Padeiros bons não são valorizados por não terem uma página, um instagram legal.
O Padeiro Artesão e a Escola de Confeiteiro
A Escola de Confeiteiro surgiu porque, durante um período, viajei muito para fazer consultoria e via muita falta de informação. Então resolvi montar uma escola em Vinhedo, São Paulo. Estava indo muito bem, mas veio a pandemia.
Mesmo assim, o Padeiro Artesão cresceu 400% do que a gente esperava e tivemos que aumentar a equipe. Os dois projetos – tanto o Padeiro Artesão como a Escola de Confeiteiro – que funcionam no mesmo lugar, agora estão com pouco espaço. Ainda, não sei se vou retirar um dos projetos do lugar e mudar para outro ou se iremos para um lugar maior.
Os cursos que ministramos nesses espaços acontecem em parcerias com empresas, ajudamos pessoas a terem oportunidades. Mais de 1.000 alunos já passaram por esses projetos.
O pão, a panificação, me possibilitou dar conforto à minha família e hoje, quando lembro de padeiros que trabalhavam comigo, lá atrás, que diziam ser besteira fazer curso, estudar isso, eu vejo que eles não evoluíram na panificação, não cresceram. Isso me marcou bastante.
Eu sempre estou estudando, pesquisando. É importante sempre criar e trazer inovação. Mas é importante ser humilde também, manter as raízes, estudar sempre, trazendo novidades. Aproveitei o meu conhecimento em confeitaria para refinar pães. A panificação permite mudar pouco, o sabor é que é o importante. Já a confeitaria dá mais liberdade. Chocolate então, nem se fala. É muito bom, é um aprendizado.
Sou um apaixonado pela padaria, confeitaria e chocolateria. Acordo às 4h da manhã e vou dormir à meia-noite. Ajudo na produção, faço cursos, dou consultorias. Falo que estou plantando a minha aposentadoria.
Em 2014, por exemplo, participei de uma competição de chocolate. Antes, havia estudado em Paris, com um grande produtor de chocolate. Hoje, tenho cinco mil receitas e empregamos 10 pessoas. Mas queremos contratar mais. Precisamos de pessoas com o mesmo pensamento, por isso mesmo estou na produção. O dono da padaria tem que saber fazer o pão.
Hoje durmo pouco, acordo cedo, 06h30 da manhã, é quando chego mais tarde na padaria. Por isso temos variedade. Também tomo conta do instagram, as legendas são sempre minhas ou da minha esposa.
Quando olho lá para trás, para o início, vejo que consegui realizar todos os projetos que tinha: estudar, viajar, representar o Brasil em competições, apresentar programa de TV, ter a padaria, empregar outras pessoas. Tudo é possível, desde que se busque. Os tombos são vistos, mas as pingas que tomamos ninguém vê. Chegar ao sucesso é cansativo e nós crescemos e geramos empregos mesmo na pandemia.
Por isso, para quem deseja investir na panificação, digo o seguinte: primeiro, estudar bastante; segundo, trabalhar bastante; terceiro, muita dedicação para panificação. E transformar pães em oportunidade. Acreditar, fazer as oportunidades, correr atrás. Tudo o que tenho é da panificação. São 26 anos e só agora consegui realizar tudo o que sonhei.
Penso na minha aposentadoria, em viajar mais, em aproveitar mais a família, fazer algo por hobby e descobrir novas coisas. Estou longe de aposentar, mas estou no caminho. Falo para minha filha Alice, de 13 anos: “— Um dia isso vai ser seu” e ela diz: “— Eu sei”. Eu falo para ela que a ideia é que ela tenha uma vida melhor, com mais oportunidades. E ela é muito grata.
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